FMI e trapalhadas
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Nestes últimos dias ficamos a conhecer um relatório do FMI conhecido pela comunicação social, antes mesmo dos deputados ou do Presidente da República terem sido avisados do mesmo.
A comunicação social transformou-se, não só com este exemplo, mas numa sucessão de casos, no instrumento de anúncio oficial do Governo. Seja pelos jornais ou pelos comentários de Marques Mendes ou António Borges, vai-se sabendo o que vai no interior da "reflexão política" governamental por via informal e nos comentários de esquina televisiva.
O relatório do FMI, independentemente das valias que possa conter, nasce mal e mal se endireita com o seu anúncio. Marques Mendes já tinha avisado e o governo foi trabalhando com o FMI a feitura do mesmo, pese embora apareça apenas com o selo oficial do FMI.
O relatório ignora a realidade social e limita-se à frieza dos números. Que o Estado tenha que cortar, estamos de acordo, mas tudo começa mal. Mais adiante explicarei porque digo isto.
O governo pretende que até ao final de Fevereiro esteja concluída a proposta de cortes a apresentar à troika. Este facto representa em si mesmo o anúncio do falhanço da discussão sobre qualquer reforma do Estado Social. Em cerca de um mês e meio pretende-se realizar um amplo debate, em que o PS possa estar envolvido. Está-se mesmo a ver que isso representa um delírio inacreditável.
Com um ano e meio de governação só agora surge esta discussão que se sabe ser essencial desde o primeiro dia do governo. Mas o governo foi incapaz de antecipar propostas ou soluções e de promover o debate e consenso necessários. Nem mesmo a Comissão eventual na AR poderá salvar a trapalhada, porque ela devia ter surgido muito antes, com o convite ao PS para uma comissão interpartidária, logo no início do estabelecimento de pressupostos de discussão.
Aliás, este último aspecto é da maior importância. O PSD assinou com o PS e CDS um memorando, que foi sendo sucessivamente revisto, ao ponto de se poder afirmar que o memorando de hoje já não é o mesmo que o PS assinou. Mas, ainda assim, o governo não se preocupou em que durante estas revisões do memorando o PS fosse chamado a dar o seu bom ou mau contributo e a ratificar as sucessivas alterações.
Aqui começa a nascer o vírus que irá ditar o fim de tudo isto. Sem diálogo, seja com o PS, seja com a concertação social, desde o primeiro dia, percebe-se que o conjunto de reformas propostas é manifestamente inviável.
Digo-o com pesar e profunda tristeza, porque se Portugal não muda como deve, tudo poderá ser pior no futuro.
Várias personalidades já se foram pronunciando sobre este relatório com queixumes ou críticas mais severas. Destacam-se, sem carácter exaustivo, Bagão Félix, Pacheco Pereira e Adriano Moreira. Paulo Portas surge, igualmente, a dizer que é necessário respeitar a CRP e que há soluções propostas que são inadmissíveis.
Começou a ouvir-se, também, que o governo não tem mandato para estas alterações, a seguir-se a "carta" proposta pelo FMI. E o próprio Primeiro-ministro já veio afirmar que tem legitimidade, sim senhor.
O que acho disto?
De facto, a proposta apresentada pelo FMI, a ser seguida no todo ou em parte, dada a sua gravidade, pode mesmo, em certos casos, colocar em causa essa legitimidade.
A CRP não prevê uma sanção para o caso em que um certo governo executa um programa distinto do seu programa de governo. Esta é a conclusão imediata que se poderá retirar da análise da CRP.
Mas tal não corresponde à verdade. A CRP institui um sistema de equilíbrios que, neste caso, impõe uma apreciação subjectiva da realidade do incumprimento. Isto porque a medição do incumprimento não pode ser apurada por uma norma constitucional. Então, a CRP entregou, em última instância, ao Presidente da República a salvaguarda do regular funcionamento das instituições democráticas. As sanções são por isso mediatas e não imediatas. É ao Presidente da República e não aos Tribunais que cumpre aferir se o desvio da política executada face ao programa de governo é de tal modo assinalável que, através dos mecanismos de que dispõe, deve intervir.
A intervenção do PR pode funcionar a vários níveis, que funcionarão em sistema gradativo consoante a própria gravidade do desvio/incumprimento. Poderão ir desde a mera advertência privada ou pública à acção governativa, até à dissolução da AR, este último o acto mais violento e disponível para as situações mais graves.
A questão que se coloca é a de saber se o governo já atingiu essa suficiente gravidade que implique, por ex., a adopção da sanção mais gravosa que culminaria com eleições.
Quanto a este ponto diria que a análise deve ser realizada a quatro níveis ou dimensões ou respondendo a algumas questões:
1º São as medidas de ablação de rendimento aprovadas com o OE 2012 e 2013 definitivas ou transitórias? Como poderão representar uma situação de confisco, a serem permanentes, essa situação é muito gravosa para o equilíbrio institucional e social.
2º Tem a «acção governativa desviada» provocado a destruição da coesão social de forma permanente ou gravosa e a incerteza no quotidiano da vida social?
3º Correspondem as medidas a promover uma transformação estrutural do Estado Social Constitucional, a tal ponto que um debate alargado e a geração de consensos se imporiam de forma acrescida? A não existência desse diálogo significará que o governo não actua no quadro democrático e parlamentar existente, mostrando-se, por essa via, inadequado à missão que lhe estava confiada pelos eleitores. Mas a crítica poderá ser estendida à oposição do arco governativo, conquanto a recusa no diálogo seja injustificável.
4º Actua o governo em violação da Constituição?
Esta reforma, importante, como disse, começa mal. Começa sem diálogo, sem o estabelecimento de pressupostos.
É encomendado um estudo que tem como único objectivo responder à questão: "onde se cortam 4000 mil milhões?".
Mas a questão devia ter sido posta de outra forma:
Deveria ter-se questionado, por exemplo:
- faz sentido existir um ensino obrigatório? Se sim, até quando e de que forma?
- faz sentido existir um ensino universitário financiado por dinheiros públicos? Se sim, de que forma e em função de que critérios?
- Que tipo de saúde se pretende? Deve atender apenas a cuidados de emergência e paliativos? Deve ir além disso? Até onde?
- etc...
Deveriam colocar-se estas questões atendendo às funções que cada Ministério executa.
- No fim, ajustar as disponibilidades em função das respostas, devendo aquelas ser revistas se as disponibilidades/recursos forem insuficientes.
São este tipo de questões que em função da resposta nos permitirão perceber que tipo de Estado Social é pretendido e aceite.
Em suma, o governo entra agora na terceira fase da sua acção governativa, a primeira durou até à TSU, a segunda até ao OE2013, e agora entra-se na fase em que o governo aguenta ou não a função que lhe foi confiada em função da discussão da "refundação" e da decisão do Tribunal Constitucional.
Digo o que tenho dito sempre... Sem diálogo, sem sensibilidade social, sem verdade e sem seriedade na discussão, a acção governativa não irá durar muito.