O conceito de soft power é central na moderna teoria das relações internacionais e do Direito Internacional Público. O poder de um Estado e a sua actuação a nível internacional já não se pautam somente (ou sobretudo) pela sua capacidade militar ou força bélica, mas pela sua forma de convencer os outros, a população da "aldeia global" em que vivemos, da justeza e oportunidade das suas decisões em matéria de política externa, nomeadamente, das intervenções militares. Este é o recorte teórico, abstracto do conceito de soft power. No entanto, ele reveste-se de enorme relevância prática: se reflectirmos, todos nós somos afectados, sentimos o efeito do "soft power" quando ouvimos música (na sua grande maioria americana), vamos ao cinema e escolhemos (quase sempre) um filme realizado nos Estados Unidos da América ou aqui , neste blog, temos acesas discussões sobre as primárias norte-americanas ou a actuação de Obama.
Com efeito, as imagens, a cultura, no mundo globalizado ,é um instrumento fundamental na diplomacia dos Estados Unidos da América - Hollywood afigura-se, assim, como o centro, a capital mundial do soft power. Este é o ponto de partida de um estimulante e curioso livro de Nathan Gardels e Mike Medavoy, designado " American Idol after Iraq". Durante décadas, a política externa norte-americana assentou na força, no reforço do armamento militar, no unilateralismo, em construções jurídicas como a de "preemptive war" que legitimaram intervenções militares à margem da Comunidade Internacional (e do Direito Internacional), o que gerou um forte sentimento de anti-americanismo em zonas estratégicas para a estabilidade internacional, como o Médio Oriente. E, ao mesmo tempo em que Bush era odiado, apelidado de diabo um pouco por todo o mundo, "Os Simpsons" tornaram-se ícones de uma cultura sem fronteiras, universal, criados à imagem de Hollywood e retratando a sociedade norte-americana. Tomando consciência desta realidade, o Departamento de Defesa dos EUA reduziu o orçamento militar para a operação no Afeganistão, reforçando, pelo contrário, as verbas destinadas a instrumentos de persuasão, ao soft power, visando conquistar os corações e as mentes (hearts and minds) das população local.
No entanto, o poder suave, apesar de suave, ainda é poder. E, como qualquer poder, deve ser utilizado com prudência e na sua justa medida. As produções de Hollywood podem, tal como as intervenções militares deficientemente justificadas, afectar a imagem dos EUA no mundo, serem profundamente contrárias à diplomacia americana. Como? Fácil: banalizando assuntos como o sexo, droga e o egoísmo materialista, dando uma imagem negativa da sociedade norte-americana (que é visceralmente religiosa e mais conservadora do que a sociedade europeia). Em países onde a religião domina a vida social e política, como o Irão ou Paquistão e países muçulmanos em geral, a cultura norte-americana é encarada como um adversário, um inimigo que urge combater e derrotar a todo o custo. Muitos até consideram o principal adversário do seu modelo de sociedade, pois séries como Sex and the City ou Desperate Housewifes colidem com os valores espirituais, os dogmas sagrados e incontestáveis daquelas sociedades.
Consequentemente, impõe-se a adopção de uma nova diplomacia, assente no equilíbrio entre "hard" e "soft power", apelando à responsabilidade social dos produtores de Hollywood, na esteira de Harry Turner, para quem os filmes devem entreter e educar. Transmitir valores, experiências e exemplos, respeitando sempre o direito constitucionalmente consagrado de livre expressão e informação. Porque todos fazemos parte da sociedade e temos deveres e responsabilidades para com ela.
Aconselho vivamente a leitura deste livro. Para perceber que a política e a cultura não são mundos paralelos, distintos, estranhos. Bem pelo contrário: política e cultura andam sempre interligadas, influenciando-se reciprocamente. A política pressupõe a cultura (toda a mensagem política tem que ser transmitida e explicada) e a cultura é um modo de expressão e afirmação da política( um filme, um quadro ou um livro encerram uma mensagem, um determindo modo de ver o mundo e a sociedade, ou seja, uma concepção política, pois não há pessoas neutras, imunes à vida da pólis). E Hollywood nunca foi alheia à vida política norte-americana...