Os filhos dos Políticos
Foi da boca da Professora Ana Coutinho, então coordenadora da UC (o nome novo das cadeiras) de Bioquímica Analítica que ouvi as palavras quais sentenciariam os meus seguintes anos de trabalho: “Nós estudamos fenómenos que não conseguimos ver. Como os podemos identificar?” Tornava-se o primeiro desafio de quem desenhava protocolos, aferir quantitativamente uma substância, uma reacção, uma catálise, o que fosse. Para esta experiência, vamos averiguar a qualidade de um Estado. Como a podemos apreciar? Localizando, sem espectrofotómetros, os filhos e parentes próximos dos políticos. É semelhante aos testes de Deborah que determinam o estado da matéria (sólido ou liquído) pela taxa de decaimento gravitacional: Se estiverem maioritariamente encafuados no aparelho governativo e sua vizinhança, a qualidade decaiu bastante e a gravidade é tremenda. Aí estaremos no “estado a que isto chegou”.
Cresci rodeado de filhos de políticos: ministros, deputados, secretários-de-estado, presidentes de câmara. De primeiros-ministros, 4; para alguns só muitos anos depois de entrar na vida adulta, vim a descobrir que os progenitores eram ou haviam sido dirigentes. Mas todos, todos sem exceção, abjuravam a prática e recusavam-se terminantemente a seguir as pisadas, mesmo que tivessem apetência ou Amor à causa pública. Mesmo os que se interessavam, o suficiente para subscrever petições ou participar em protestos, faziam-no discretamente, longe das câmaras e da atenção. Não é de espantar: um dos mencionados viu o ascendente envolvido num escândalo mediático e, com ou sem justiça, compreendeu que a exposição tem um preço. Outro amigo, esse sim Político, comoveu-se quando o filho tomou à letra um comentário televisivo sobre o facto do Pai “estar a ser queimado” pelos colegas de partido e protegeu a família da ribalta, priorizando-a ao frenesim mediático.
Uma geração mais tarde, é consternado que me deparo com os filhos de políticos em lugares de destaque na “cena” pública. Pode ser o filho do primeiro-ministro numa junta ou a filha do seu chefe de gabinete na presidência duma associação Estudantil. Curiosamente, ambas as posses foram impostas por caminhos tortuosos, sem escrutínio direto e com trocas de favores obscuros: O primeiro com a promoção do Presidente eleito, a deputado e a secretário da organização Socialista; O segundo, com cedências de uma junta e idas a tribunal. Mas são menos os contornos norte-coreanos que quero sublinhar (quem é que acredita na democracia em Portugal depois de 2015?) e mais a mensagem subliminar. Não é o nepotismo; é aquilo que se faz com ele.
Ninguém espera ver os senhores do poder condenarem as famílias à condição videira das populações civis. Talvez na civilização, mas aqui certas benesses são incontornáveis: uma educação de elite, agenda privilegiada de contactos, muitas portas abertas e, até, facilidades extraordinárias na procura de crédito bancário. Como um líder partidário me garantiu “certas famílias, nunca conhecerão o desemprego”. Mas se estas premissas eram comuns para a prole de elite com que convivi, a condição atual é diferente. A maioria educou-se e estabilizou-se por conta própria, longe dos holofotes do poder, na convicção de que poderiam fazer uma vida próspera e bem-sucedida sem as muletas político-partidárias.
Com os millenials é diferente. Terá sido essa a mudança?
A filiação ao primeiro-ministro move montanhas Socialistas e o nome "Escária" impressiona e pressiona no corrompível meio Estudantil onde a proximidade ao poder granjeia apoios e votos, um dirigismo ambicioso mas também parolo e deslumbrado. O fenómeno contudo demonstra a falta de deslumbramento com um país em que nem os canudos ou os contactos permitem, hoje, a prosperidade . Não é necessariamente um fenómeno de corrupção como aquela de que o novo chefe de gabinete do primeiro-ministro foi acusado, a utilização do poder para acumular riqueza; mas a ideia de que ninguém escapa à sina dos quinhentos euristas se se quedar longe do poder.
O seu exemplo, de conversão da vida política num negócio de família, é esclarecedor. Não parecem existir opções reais de carreira nem com todas as supramencionadas prerrogativas, excepto a emigração. Quem os vê retira um exemplo, prevê um futuro, antevendo como daqui e dali saltarão para os ministérios, herdando cargos e títulos, remunerações, desorientações, propensão para a atavia e para o fracasso. Mais uma geração que se perde.