Cinquenta Estados da Doença
Arrogância, Ignorância e outros Pecados Mortais “Trumpianos”
Não sou epidemiologista, nem tão pouco especialista em saúde. O que aqui escrevo é baseado em algum trabalho de investigação e opinião pessoal. Os dados dos vários indicadores que mencionarei são de 2017 e 2018.
Os EUA são a maior potência económica mundial, mas serão a mais sã?
Os gastos públicos per capita com a saúde nos EUA são semelhantes a muitos dos países da OCDE. Os gastos totais, que incluem os privados per capita, excedem largamente, sendo que, em percentagem do PIB, ascendem ao dobro da média dos países da OCDE.
Curiosamente, apesar destes gastos astronómicos, os dados tendem a não ser simpáticos para os cidadãos norte-americanos. Face à média da OCDE, 40% são obesos, o dobro desta média; a sua Esperança Média de Vida à nascença (EMV) é dois anos inferior; têm mais 10% de incidência de doenças crónicas; menos 41% de média de consultas médicas per capita; menos 26% de médicos por mil habitantes. É certo que apresenta dados positivos, como uma maior percentagem de população idosa imunizada, de mamografias, mais ressonâncias magnéticas e cirurgias de colocação de próteses na anca por mil habitantes, entre outros.
A EMV nos EUA é muito díspar quanto à cor da pele. À nascença, é espectável que os cidadãos negros vivam, em média, menos 3 anos que os brancos. Isto revelará uma desigualdade em relação ao acesso aos cuidados de saúde. Olhando para a população abaixo do limiar de pobreza neste país, em percentagem, há o dobro de cidadãos negros nesta condição, face aos brancos. Ou seja, haverá uma efetiva disparidade no acesso à saúde neste país, privando aqueles que menos recursos têm deste direito fundamental.
Este país gasta mais do que a maioria dos seus pares e tem um resultado muito pior. Porque será? A resposta pode residir numa brutal especulação de preços, numa administração complexa, fraude e abuso, entre outros, que levam ao desperdício de 25% do que é investido no setor da saúde.
Para além de uma gestão deficiente e desigual dos recursos, a esta verdadeira receita para o desastre junta-se um Chef, especializado em pratos típicos de arrogância e ignorância, para que seja servido um buffet mortal.
Donald J. Trump, Presidente dos EUA, ao longo do seu mandato tem tomado uma série de posições questionáveis, mas focar-me-ei apenas na sua ação em relação à saúde.Na primavera de 2018 demitiu a Direção do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca para Segurança Global em Saúde e Bio defesa. Esta tinha já lidado com crises epidemiológicas associadas ao vírus Ébola e Zika.
Este departamento é essencial, pois permite um planeamento constante de resposta a situações epidémicas. Este despedimento, bem como diversos cortes de fundos federais para a saúde, em especial para a prevenção de situações como a que vivemos hoje, tornou os EUA ainda mais frágeis.
O Presidente dos EUA ignorou diversos relatórios de agências de inteligência norte-americana, que lhe chegaram às mãos em janeiro e fevereiro e que o advertiam da dimensão que a doença poderia tomar. No final do mês de janeiro, após a deteção do primeiro caso nos EUA, foram restritas as viagens vindas da China. Donald Trump não deixou de, por várias vezes, se referir à Covid-19 como uma gripe normal, com uma baixa taxa de mortalidade, o que é falso, visto que este vírus é muito mais transmissível, mais mortal e ainda não tem vacina que permita imunização. Mesmo quando o assunto se começou a tornar bastante sério neste país, chegou a afirmar que o vírus desapareceria miraculosamente.
A 13 de março, dois dias após a declaração deste vírus como pandémico, foi declarado o estado de emergência nacional, quando haviam sido detetados mais de 2000 casos neste país.
No dia 27 de abril registaram-se quase 1 milhão casos detetados e perto de 56 mil mortos.
Este é o resultado da combinação de uma provisão deficiente e desigual de cuidados de saúde com a ignorância e arrogância de alguém que comanda os destinos de um país. A sua constante insistência em ignorar a ameaça premente, em negar a aplicação atempada de medidas preventivas (como o distanciamento social e a realização de testes em massa), levaram à perda de tempo precioso e, consequentemente, de vidas. Não é no seu currículo que mais pesarão estes verdadeiros pecados mortais, mas nos corações dos norte-americanos que, de súbito, se viram privados dos seus entes queridos.
Apesar do desastre já provocado, este presidente teima em não seguir os conselhos da comunidade científica, como se verificou quando, antes de estar comprovada a sua eficácia, aconselhou vivamente (ou mortalmente) a utilização de hidroxicloroquina para o tratamento da Covid-19. Este fármaco é prejudicial para o coração e, como o vírus o debilita, a administração deste medicamento pode ser perigosa.
Estes pecados devem servir de exemplo de como não atear um país, transformando-o num inferno. É certo que Donald Trump não é culpado pelo surgimento do vírus, mas o seu comportamento errático e irresponsável impediu a adoção de políticas preventivas intensivas com meses de antecedência, o que poderia ter salvo muitos.
Estes 50 estados da doença mostram o quão frágil e suscetível os EUA são. A saúde é um direito essencial e intrínseco ao ser humano, pelo que deve ser protegido e garantido. Após esta calamidade, os EUA deverão repensar o seu sistema de saúde e as escolhas que fazem enquanto eleitores.
D. Gonçalves da Silva